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Desafios e Perspectivas da Heteroidentificação na Política de Cotas Raciais da USP.



 

Resumo:

O presente trabalho realiza uma análise aprofundada da implementação da política de cotas raciais na Universidade de São Paulo (USP), com ênfase no processo de heteroidentificação. Examina a trajetória histórica das cotas no Brasil, os resultados alcançados na promoção da inclusão racial no ensino superior e a crescente complexidade e os desafios inerentes aos mecanismos de heteroidentificação. A análise dos processos judiciais movidos contra a USP revela tensões e questionamentos na aplicação da heteroidentificação, destacando a importância de um debate contínuo e da busca por aprimoramentos que conciliem o combate a fraudes com o respeito aos direitos individuais e à autonomia universitária. A pesquisa busca identificar padrões nos argumentos dos autores dos processos e nas contestações da USP, oferecendo uma visão abrangente das controvérsias e potenciais caminhos para o aprimoramento do sistema.

Abstract:

This paper provides an in-depth analysis of the implementation of racial quota policies at the University of São Paulo (USP), with a focus on the heteroidentification process. It examines the historical trajectory of quotas in Brazil, the results achieved in promoting racial inclusion in higher education, and the increasing complexity and challenges inherent in heteroidentification mechanisms. The analysis of lawsuits filed against USP reveals tensions and questions in the application of heteroidentification, highlighting the importance of ongoing debate and the search for improvements that reconcile the fight against fraud with respect for individual rights and university autonomy. The research aims to identify patterns in the arguments of the plaintiffs in the lawsuits and in the defenses of USP, offering a comprehensive view of the controversies and potential pathways for improving the system.






 

Introdução:

A política de cotas raciais representa um marco fundamental na busca por equidade e justiça social no Brasil, com o objetivo primordial de combater as históricas desigualdades raciais que se manifestam de maneira persistente no acesso ao ensino superior. A Universidade de São Paulo (USP), reconhecida como uma das maiores e mais prestigiadas instituições de ensino superior do país, implementou essa política, incorporando o mecanismo de heteroidentificação, como um instrumento para assegurar que as vagas reservadas sejam efetivamente destinadas a candidatos que correspondam aos critérios estabelecidos.

A formulação de políticas públicas, conforme Souza (2006), constitui-se no estágio em que os governos democráticos traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações que produzirão resultados ou mudanças no mundo real (Santos, 2023, p. 60). Nesse contexto, a política de cotas raciais se insere como uma ação específica, direcionada para as questões que atingem grupos minoritários na sociedade, os quais, apesar de inseridos na sociedade em geral, possuem demandas diferenciadas (Santos, 2023, p. 60).   

A organização dos movimentos negros, um fator crucial na trajetória das políticas de cotas, ganhou força a partir da criação do MNU em 1978. Essa organização passou a direcionar sua luta para a busca de políticas específicas de combate ao racismo, à discriminação e ao preconceito racial, visando a diminuição das desigualdades (Santos, 2023, p. 60).

Historicamente, o Brasil adotou uma postura de coibir e punir o preconceito racial, reiterando o respeito à liberdade e à responsabilidade individual, em um entendimento que, já naquela conjuntura internacional, se mostrava arcaico e ultrapassado (Guimarães, 2015, p. 21). Como afirma Guimarães (2015, p. 18), "No Brasil, graças à sábia e benemérita Lei Afonso Arinos toda espécie de discriminação racial é considerada crime, sujeito a sanção penal". Contudo, essa perspectiva, como aponta o mesmo autor, ignorava a profundidade das desigualdades raciais e a necessidade de medidas mais incisivas para promover a inclusão (Guimarães, 2015).   

A presente pesquisa chegpu 31 processos judiciais movidos contra a USP, identificados a partir de buscas no sistema e-SAJ realizadas em 21 de agosto de 2024, utilizando os verbetes "USP" e "heteroidentificação", no entanto, o objetivo era somente casos ocorridos no ano de 2024, restaram 16 processos, os demais ora não tratava da heteroidentificação, ora eram processos iniciados anos anteriores. O objetivo central deste artigo é conhecer os padrões e analisar criticamente os motivos com que a Comissão de Heteroidentificação da USP tem negado o acesso aos candidatos avaliados. A análise dos dados tabulados desses processos revela uma série de questionamentos em relação ao processo de heteroidentificação da universidade. Busca-se compreender as principais controvérsias e apontar caminhos para o aprimoramento desse mecanismo, visando garantir a justiça e a transparência no acesso ao ensino superior.


 

1. A Trajetória Histórica das Cotas Raciais no Brasil: Da Coibição à Ação Afirmativa

A discussão sobre ações afirmativas no Brasil, e especificamente sobre a política de cotas raciais, emergiu com força no final do século XX, impulsionada pela crescente organização do movimento negro e pela percepção de que as políticas universais não eram suficientes para superar as profundas desigualdades raciais estruturais (Santos, 2023). A criação do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978 representou um marco crucial nessa trajetória, direcionando esforços para a busca de políticas específicas de combate ao racismo, à discriminação e ao preconceito racial, visando a diminuição das desigualdades (Santos, 2023).

Historicamente, o Brasil adotou uma postura de coibir e punir o preconceito racial, reiterando o respeito à liberdade e à responsabilidade individual, em um entendimento que, como aponta Guimarães (2015), já naquela conjuntura internacional, se mostrava arcaico e ultrapassado. Essa perspectiva, conforme Guimarães (2015, p. 21), ignorava a profundidade das desigualdades raciais e a necessidade de medidas mais incisivas para promover a inclusão. Como o próprio autor observa, "E o que realmente prevaleceu foi um entendimento bastante arcaico, e ultrapassado já naquela conjuntura internacional, de que se preveniria o acirramento da questão racial a partir de dispositivos legais e constitucionais que reiterassem o respeito à liberdade e a responsabilidade individual, coibindo e punindo o preconceito racial" (Guimarães, 2015, p. 21).   

Essa abordagem, que se manifestava na crença de que a discriminação racial era um problema a ser combatido individualmente, sem a necessidade de intervenções mais amplas, contrastava com a realidade de uma sociedade marcada por desigualdades raciais persistentes. A Lei Afonso Arinos (1951), embora representasse um avanço ao tipificar a discriminação racial como crime, não foi suficiente para alterar o quadro de desigualdade. Guimarães (2015) destaca que, naquele período, a ideia de ações afirmativas era considerada ainda pior do que o crime de racismo, com a justificativa de que qualquer regulamentação importaria no reconhecimento oficial da discriminação.

A superação dessa visão e a gradual aceitação da necessidade de políticas específicas, como as cotas raciais, representaram uma mudança paradigmática no Brasil. A implementação dessas políticas, a partir dos anos 2000, nas universidades públicas, marcou o reconhecimento da necessidade de ações afirmativas para garantir o acesso de grupos historicamente marginalizados ao ensino superior, representando um passo fundamental na busca por uma sociedade mais justa e equitativa.





 

A Branquitude e a Recepção das Cotas

A branquitude, enquanto lugar de poder e privilégio, apresenta reações diversas e complexas em relação às cotas raciais. Essa complexidade se manifesta tanto na esfera acadêmica quanto na sociedade em geral.

Na esfera acadêmica:

  • Resistência e manutenção de privilégios: Ribeiro (2023) aponta que a branquitude acadêmica se protege e se fortalece através de mecanismos que perpetuam desigualdades raciais dentro das universidades. Isso inclui a predominância de pesquisadores brancos, a falta de representatividade de estudantes e professores negros, e a produção de conhecimento e currículos brancocentrados.

  • Epistemicídio: A branquitude acadêmica também se utiliza do "epistemicídio", que consiste na desvalorização, marginalização e apagamento de outros sistemas de pensamento e conhecimento que não sejam aqueles advindos de grupos hegemônicos (Ribeiro, 2023).

  • Invisibilização da produção intelectual negra: Ribeiro (2023) destaca que o apagamento ou a ocultação da produção intelectual de não-brancos é uma ferramenta da branquitude acadêmica, contribuindo para sustentar a ideia de que determinadas ocupações sociais são exercidas de forma mais eficiente pelo branco.

  • Rejeição da racialização: A branquitude tenta a todo custo não se deixar racializar, pois o processo de racialização a coloca como ser comum e não como o "EU" por excelência e por essência do que é humanidade (Ribeiro, 2023).

Na sociedade em geral:

  • Argumentos contrários às cotas: Santos (2023) e Vieira et al. (2022) apontam que os argumentos contrários às cotas raciais frequentemente incluem a alegação de que as cotas representam um modelo importado dos Estados Unidos, que a miscigenação dificulta a identificação do grupo beneficiário, que a falta de presença de afrodescendentes em posições elevadas se deve a questões sociais e que a solução seria investir em educação básica de qualidade para todos.

  • Percepção de privilégio: Moehlecke (2002) observa que aqueles que percebem as cotas como um privilégio, e não como um direito, tendem a vê-las como uma "discriminação ao avesso", que favoreceria um grupo em detrimento de outro, além de contribuir para que esses grupos fossem vistos como inferiores e incapazes de conseguir realizar uma tarefa de acordo com seus próprios méritos.

  • Dificuldade em reconhecer a desigualdade racial: Guimarães (2015) aponta que, historicamente, houve uma dificuldade em reconhecer o caráter estrutural do racismo no Brasil, tratando-o como preconceito individual. Essa visão dificulta a compreensão da necessidade de ações afirmativas para combater as desigualdades raciais.

Em suma, a branquitude apresenta uma gama de reações às cotas raciais, que vão desde a resistência e a manutenção de privilégios até a dificuldade em reconhecer a necessidade de políticas de ação afirmativa. Essa complexidade reflete a persistência de desigualdades raciais estruturais na sociedade brasileira e a importância do debate contínuo sobre o tema.



 

2. Desempenho dos Cotistas no Ensino Superior:

O desempenho acadêmico dos estudantes cotistas no ensino superior tem sido objeto de diversos estudos e pesquisas, buscando analisar o impacto da política de cotas na qualidade do ensino e no aproveitamento dos alunos.

Resultados Positivos e Desempenho Similar:

  • Vieira et al. (2019) apontam que "Aproximadamente 68% dos artigos evidenciam aproveitamento acadêmico similar entre cotistas e não-cotistas e nenhuma das pesquisas mostra uma relação desfavorável ao cotista quanto a este quesito."

  • A pesquisa de Vieira et al. (2022) também confirma o bom desempenho acadêmico dos alunos cotistas e sua baixa evasão, destacando aspectos positivos da utilização ampla das cotas.

  • Castro (2023) observa que "As notas de entrada no processo seletivo também são significativamente menores entre os cotistas, como esperado." No entanto, essa diferença inicial não se traduz em desempenho acadêmico inferior ao longo do curso.

Evasão e Desafios de Permanência:

  • Castro (2023) apresenta dados sobre a evasão entre cotistas e não cotistas, mostrando que "A taxa de evasão entre cotistas é de 20,7%, 5,1 pontos percentuais acima da taxa dos não cotistas. Para os cotistas PPI, a taxa é ainda maior (24,1%)."

  • A pesquisa aponta que a maior evasão entre cotistas não está associada à condição de cotista em si, mas sim a outros fatores, como a condição de alunos PPI (pretos, pardos e indígenas) e EP (escola pública).

  • Castro (2023) conclui que "Essas diferenças mostram que a política de inclusão sozinha não é capaz de igualar as chances de permanência e conclusão. As chances de acesso aumentam, mas barreiras permanecem no caminho da conclusão."

Considerações sobre Mérito e Desigualdades:

  • Vieira et al. (2022) destacam que "Alguns estudos apontaram que o mérito se apresentava como fator de constituição de desigualdades sociais e raciais (Souza & Barbosa, 2016; Santos & Scopinho, 2016)." Essa observação ressalta a importância de relativizar o conceito de mérito, considerando as desigualdades de oportunidades enfrentadas por diferentes grupos sociais.

Em suma, os estudos sobre o desempenho dos cotistas no ensino superior indicam que, em geral, o aproveitamento acadêmico é similar ao dos não cotistas, e a evasão, embora presente, está mais relacionada a fatores socioeconômicos e raciais do que à capacidade dos alunos cotistas. No entanto, os desafios de permanência e conclusão dos cursos por parte dos cotistas, especialmente os PPI e EP, evidenciam a necessidade de políticas complementares que garantam o apoio e o acompanhamento desses estudantes ao longo de sua trajetória acadêmica.

 

3. Competência Moral de Estudantes e Professores sobre o Tema da Heteroidentificação:

 

A competência moral, em termos simples, refere-se à capacidade de um indivíduo de aplicar princípios morais e valores em situações da vida real, demonstrando um julgamento moral sofisticado e consistente. Ela envolve tanto a compreensão cognitiva dos princípios morais quanto a capacidade afetiva de considerar as perspectivas dos outros e sentir empatia. Uma pessoa com alta competência moral é capaz de analisar dilemas éticos, tomar decisões justas e agir de acordo com seus valores morais, mesmo diante de desafios ou pressões sociais. Essa capacidade é essencial para a participação efetiva e responsável em uma sociedade democrática.

A competência moral de estudantes e professores em relação ao tema da heteroidentificação é um aspecto crucial para a compreensão e o debate sobre a política de cotas raciais. Vieira et al. (2022) realizaram um estudo que aborda essa questão, utilizando o Teste de Competência Moral (MCT_xt) para avaliar aspectos afetivos e cognitivos do julgamento moral.

  • Baixo índice de competência moral e conflito de interesse: Os resultados do estudo indicaram um baixo índice de competência moral (C) entre os participantes, além de um conflito de interesse no julgamento da justiça das cotas, com a questão racial sendo o principal fator de discordância.

  • Influência do status de cotista/não cotista: A pesquisa demonstrou que, entre os alunos não cotistas, quanto maior o índice C, mais consideravam as cotas injustas, enquanto entre os cotistas, quanto menor o escore C, maior a escolha pela justiça.

  • Justiça por equidade e desenvolvimento moral: Vieira et al. (2022) argumentam que, para julgamentos pautados na justiça por equidade, como no caso das ações afirmativas, seriam necessários níveis superiores de desenvolvimento moral.

  • Papel da educação no desenvolvimento da competência moral: O estudo ressalta o papel essencial da educação no desenvolvimento da competência moral dos estudantes e, consequentemente, na promoção de sua participação na vida social, cívica e profissional.

  • Cotas como dilema moral social: Vieira et al. (2022) entendem que as cotas se apresentam como um dilema moral social de grande importância, e que o nível de competência moral dos estudantes e professores é uma medida importante para a compreensão de seus julgamentos a respeito da utilização dessa ação afirmativa.

  • Julgamentos influenciados por interesses: Os julgamentos dos estudantes cotistas foram mais favoráveis à justiça da utilização das cotas do que os dos não cotistas e professores, enquanto os alunos não cotistas julgavam os argumentos relacionados à injustiça das cotas de maneira mais favorável. Tal posicionamento remete ao interesse pessoal e social, apresentando-se como uma dimensão afetiva e motivadora, regulando o julgamento.

Em suma, a competência moral de estudantes e professores desempenha um papel fundamental na forma como percebem e julgam as políticas de cotas e a heteroidentificação. O desenvolvimento da competência moral, por meio da educação, é essencial para promover julgamentos mais justos e equitativos, considerando o valor social das ações afirmativas e a necessidade de se colocar no lugar do outro.

4. A Autodeclaração e o Desafio da Validação pela Heteroidentificação: O Olhar do Outro

A autodeclaração racial é um instrumento fundamental na política de cotas, permitindo que os candidatos se identifiquem como pertencentes a um grupo racial específico. No entanto, a implementação do mecanismo de heteroidentificação, que consiste na validação dessa autodeclaração por terceiros, introduz uma camada de complexidade e desafios ao processo. A heteroidentificação, essencialmente "o olhar do outro", busca prevenir fraudes e garantir que as vagas reservadas sejam ocupadas por aqueles que realmente se enquadram nos critérios estabelecidos, mas também pode gerar questionamentos sobre a legitimidade e o impacto desse olhar.

A pesquisa realizada por Vieira et al. (2022) destaca que o julgamento moral sobre a justiça das cotas é influenciado pelo status de cotista ou não cotista, revelando um conflito de interesses na percepção da política. Essa polarização pode se refletir na forma como as comissões de heteroidentificação avaliam a autodeclaração, com possíveis vieses e interpretações subjetivas.

Os processos judiciais analisados na presente pesquisa revelam uma série de questionamentos sobre o processo de heteroidentificação da USP, incluindo alegações de subjetivismo, falta de critérios claros, falta de motivação das decisões e procedimentos inadequados. Esses questionamentos sugerem que o "olhar do outro" nem sempre é percebido como justo ou transparente pelos candidatos.

A dificuldade em validar a autodeclaração reside, em parte, na complexidade da identidade racial no Brasil. A mestiçagem e a fluidez das categorias raciais tornam a identificação um processo multifacetado, que vai além da simples observação fenotípica. Guimarães (2015) aponta a "rica tessitura de uma raça que se forja na base de todas as raças e todos os sangues", destacando a dificuldade em estabelecer fronteiras claras entre os grupos raciais.

A heteroidentificação, ao depender do julgamento de terceiros, pode não capturar a complexidade da identidade racial autodeclarada, correndo o risco de invalidar experiências e vivências individuais. Além disso, a falta de critérios objetivos e transparentes pode gerar insegurança jurídica e a percepção de arbitrariedade no processo.

Portanto, enquanto a heteroidentificação se apresenta como um mecanismo importante para a garantia da política de cotas, é fundamental que o "olhar do outro" seja exercido de forma cuidadosa, transparente e com critérios bem definidos, respeitando a autodeclaração e a complexidade da identidade racial, e evitando a perpetuação de injustiças e questionamentos sobre a legitimidade do processo.

 

5- Análise Histórica da USP e a Implementação das Cotas Raciais

A Universidade de São Paulo (USP), uma das mais prestigiadas instituições de ensino superior do Brasil, possui uma história marcada por desafios no que tange à inclusão racial e social. A demora em adotar políticas de cotas raciais e o histórico baixo número de estudantes negros e de baixa renda refletem a complexidade do debate sobre igualdade e acesso no ensino superior.

Demora na Adoção de Cotas Raciais:

A USP, assim como outras universidades brasileiras, resistiu inicialmente à implementação de políticas de cotas raciais. Essa resistência pode ser compreendida dentro de um contexto histórico em que se priorizava a ideia de igualdade formal, com o argumento de que o mérito individual deveria ser o único critério de acesso ao ensino superior. Como aponta Guimarães (2015), historicamente, prevaleceu no Brasil um entendimento de que se preveniria o acirramento da questão racial a partir de dispositivos legais que reiterassem o respeito à liberdade e à responsabilidade individual. Essa perspectiva, como o autor destaca, ignorava a profundidade das desigualdades raciais e a necessidade de medidas mais incisivas.

A USP começou a implementar um sistema de cotas, incluindo as raciais, de forma mais efetiva a partir de 2018, após anos de debates e pressões sociais. Essa demora em aderir às políticas de ação afirmativa pode ser vista como um reflexo da dificuldade em romper com a visão de que o acesso à universidade deveria ser pautado exclusivamente no desempenho individual, desconsiderando as desigualdades estruturais que afetam diferentes grupos sociais.

Ínfimo Número de Pretos e Pobres na Universidade:

Historicamente, a USP apresentou um número reduzido de estudantes negros e de baixa renda em seus cursos. Essa baixa representatividade é um reflexo das desigualdades sociais e raciais presentes na sociedade brasileira, que se manifestam no acesso à educação básica de qualidade e nas oportunidades de ascensão social.

A própria estrutura de acesso à universidade, baseada no vestibular, historicamente favoreceu estudantes de classes mais altas, que geralmente tiveram acesso a melhores escolas e condições de estudo. Essa realidade contribuiu para a manutenção de um ambiente universitário pouco diverso em termos raciais e socioeconômicos.

A implementação das cotas raciais e sociais na USP, embora tardia, representa um esforço para alterar esse cenário. Ao reservar vagas para estudantes de escolas públicas, pretos, pardos e indígenas, a universidade busca promover uma maior inclusão e diversidade em seu corpo discente. Os resultados dessas políticas, embora ainda em processo de avaliação, apontam para um aumento na representatividade desses grupos na USP, conforme apontam estudos sobre o desempenho dos cotistas em outras universidades (Vieira et al., 2019; Vieira et al., 2022).

 

Análise dos Argumentos nos Processos Judiciais contra a USP

Argumento

Número de Ocorrências

Porcentagem (%)

Falta de Motivação

12

75.0

Mecanismo Antifraude

4

25.0

Falta de Parâmetros

7

43.8

Ilegalidade

11

68.8

IBGE

6

37.5

Razoabilidade

6

37.5

Inconstitucionalidade

2

12.5

Isonomia

1

6.3

Falta de Vinculação ao Edital

3

18.8

Observações:

  • A porcentagem foi calculada com base no número total de processos analisados (16, considerando os dados fornecidos).

  • Um mesmo processo pode apresentar múltiplos argumentos, por isso a soma das ocorrências é maior que o número total de processos.

Esta tabela oferece uma visão clara dos principais pontos de questionamento levantados nos processos judiciais contra a USP relacionados à heteroidentificação. A alta frequência de argumentos como "Falta de Motivação" e "Ilegalidade" sugere áreas críticas que merecem atenção e possível aprimoramento no processo de heteroidentificação da universidade.

 

Análise das Contestações da USP nos Processos Judiciais

A tabela a seguir apresenta a análise das contestações da USP nos processos judiciais relacionados à heteroidentificação, com o número de ocorrências e as porcentagens correspondentes:

Argumento de Contestações da USP

Número de Ocorrências

Porcentagem (%)

Autonomia universitária

14

87.50

Historicidade

4

25.00

Não aferição prévia

9

56.25

Mera revisão

3

18.75

Heteroidentificação virtual

2

12.50

Decisão fundamentada

8

50.00

Vinculação ao edital

2

12.50

Tripartição dos poderes

6

37.50

Observações:

  • A porcentagem foi calculada com base no número total de processos analisados (16).

  • Um mesmo processo pode apresentar múltiplos argumentos de contestação, por isso a soma das ocorrências é maior que o número total de processos.


 

Análise Comparativa dos Argumentos

Argumento

 

Número de Ocorrências

Porcentagem (%)

Argumentos dos Autores:



 

Falta de Motivação

 

12

75.0

Mecanismo Antifraude


 

4

25.0

Falta de Parâmetros


 

7

43.8

Ilegalidade


 

11

68.8

IBGE


 

6

37.5

Razoabilidade


 

6

37.5

Inconstitucionalidade


 

2

12.5

Isonomia


 

1

6.3

Falta de Vinculação ao Edital


 

3

18.8

Argumentos de Contestações da USP:



 

Autonomia universitária



 

14

87.50

Historicidade


 

4

25.00

Não aferição prévia


 

9

56.25

Mera revisão


 

3

18.75

Heteroidentificação virtual


 

2

12.50

Decisão fundamentada


 

8

50.00

Vinculação ao edital


 

2

12.50

Tripartição dos poderes


 

6

37.50


 

Comparação e Análise:

  • Falta de Motivação vs. Decisão Fundamentada: Um dos argumentos mais frequentes dos autores é a "Falta de Motivação" (75%), enquanto a USP contrapõe com o argumento de "Decisão Fundamentada" (50%). Essa dicotomia sugere uma divergência na percepção sobre a clareza e suficiência das justificativas apresentadas pelas comissões de heteroidentificação.

  • Ilegalidade vs. Autonomia Universitária: A alegação de "Ilegalidade" (68.8%) por parte dos autores se opõe diretamente ao argumento da "Autonomia Universitária" (87.50%) utilizado pela USP. Essa contraposição reflete o debate sobre os limites da autonomia universitária frente à legislação e aos direitos individuais.

  • Falta de Parâmetros vs. Não Aferição Prévia: Os autores questionam a "Falta de Parâmetros" (43.8%), enquanto a USP utiliza o argumento de "Não Aferição Prévia" (56.25%). Essa comparação pode indicar uma disputa sobre o momento e a forma de avaliação da autodeclaração racial.

  • Vinculação ao Edital: Tanto autores (18.8%) quanto a USP (12.50%) mencionam a "Vinculação ao Edital", embora com perspectivas diferentes. Os autores podem alegar descumprimento do edital, enquanto a USP pode argumentar que seguiu as regras estabelecidas.

  • Outros Argumentos: Outros argumentos como "Mecanismo Antifraude", "IBGE", "Razoabilidade", "Inconstitucionalidade" e "Isonomia" aparecem com menor frequência entre os autores. A USP também apresenta argumentos como "Historicidade", "Mera Revisão", "Heteroidentificação Virtual" e "Tripartição dos Poderes", que não encontram correspondência direta nos argumentos dos autores.

  Considerações complementares

Com base na análise comparativa dos argumentos apresentados nos processos judiciais contra a USP e os argumentos de contestação da universidade, e considerando o conteúdo dos artigos, é possível aprofundar as considerações sobre a autonomia universitária.

A "Autonomia Universitária" (87,50%) se destaca como o argumento mais utilizado pela USP em suas contestações. Esse argumento se contrapõe, em certa medida, à alegação de "Ilegalidade" (68.8%) por parte dos autores dos processos. Essa contraposição reflete um debate central sobre os limites da autonomia universitária frente à necessidade de garantir direitos e combater desigualdades.

A autonomia universitária, historicamente defendida como essencial para a liberdade de ensino, pesquisa e administração, é invocada pela USP como um direito de conduzir seus processos seletivos, incluindo a heteroidentificação, da forma que considera mais adequada. No entanto, os autores dos processos questionam se essa autonomia está sendo exercida dentro dos limites legais e se os procedimentos adotados são justos e transparentes.

A formulação de políticas públicas, como a de cotas raciais, envolve traduzir propósitos em ações que produzirão resultados no mundo real (Santos, 2023). A autonomia universitária, nesse contexto, precisa ser equilibrada com o objetivo da política de cotas de corrigir injustiças históricas e promover a igualdade (Santos, 2023). Como afirma Santos (2023, p. 60), "A formulação de políticas públicas constitui-se no estágio em que os governos democráticos traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações que produzirão resultados ou mudanças no mundo real". A política 1 de cotas, nesse sentido, busca concretizar o propósito de inclusão e equidade.   



 

6- A Certeza de que a USP Não Errou: A Defesa da Heteroidentificação pela Universidade

Em uma opinião publicada na Folha de São Paulo e posteriormente divulgada na página da Universidade, uma professora do Campus defende veementemente a política de cotas raciais e a implementação da heteroidentificação pela USP, refutando críticas consideradas "pouco racionais". A argumentação central reside na premissa de que a USP não errou ao adotar esse sistema, pois ele representa um passo crucial para combater a discriminação racial persistente na sociedade brasileira. 

O texto critica a visão de que a miscigenação brasileira torna o critério racial inadequado, argumentando que tal perspectiva ignora o preconceito de cor ainda presente. A professora enfatiza que a Lei de Cotas não se baseia em genótipo, mas sim no fenótipo, o aspecto exterior que leva ao reconhecimento de grupos étnicos distintos. Essa escolha é justificada pela realidade do racismo no Brasil, que se manifesta justamente a partir das características fenotípicas.

A criação das comissões de heteroidentificação na USP é apresentada como uma resposta à demanda do movimento negro, visando impedir a concessão indevida de benefícios. A professora defende o rigor do processo, argumentando que ele não é sinal de falha, mas sim de que a regra está funcionando. O procedimento é descrito como cuidadoso, com múltiplas etapas de avaliação e a possibilidade de recurso. Os dados de 2024, com uma alta taxa de aprovação, são utilizados para reforçar a ideia de que o processo é eficaz e deve ser tratado com seriedade.

Em suma, a professora defende a heteroidentificação como um mecanismo necessário e bem implementado pela USP, essencial para o avanço da agenda antirracista e para garantir que a política de cotas atinja seus objetivos de inclusão e reparação histórica.

 

7-CONCLUSÕES

 

A análise realizada neste trabalho demonstra a complexidade da implementação da política de cotas raciais na USP, com foco no processo de heteroidentificação. Embora a política de cotas represente um avanço significativo na promoção da inclusão racial e social no ensino superior, a heteroidentificação, essencial para garantir a efetividade da política, enfrenta desafios e questionamentos.

A análise dos processos judiciais revela tensões entre a autonomia da universidade e os direitos dos candidatos, com alegações de falta de motivação, subjetividade e ilegalidade nos procedimentos de heteroidentificação. Por outro lado, a USP invoca sua autonomia e alega que suas decisões são fundamentadas.

A comparação dos argumentos dos autores e da USP destaca a necessidade de aprimorar o processo de heteroidentificação, buscando maior clareza nos critérios, transparência nas decisões e respeito aos direitos dos candidatos, ao mesmo tempo em que se considera a autonomia da universidade.

A história da USP, marcada por uma demora inicial em aderir às cotas e por um número historicamente baixo de estudantes negros e de baixa renda, evidencia a importância da política de cotas para promover a diversidade. No entanto, a implementação da heteroidentificação exige um debate contínuo e a busca por um equilíbrio que permita à universidade exercer sua autonomia de forma responsável e comprometida com a inclusão e a igualdade.

Em suma, a superação dos desafios da heteroidentificação é crucial para o fortalecimento da política de cotas e para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa. É fundamental que a USP, em diálogo com a sociedade civil e o poder judiciário, busque soluções que garantam um processo justo, transparente e eficaz, que contribua para o combate ao racismo e a promoção da igualdade de oportunidades.

©2025 por Juliano Amaral. Sociedade Individual de Advocacia CNPJ: 51.910.308/0001/91

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